A maldição da realidade complacente

Posted By Eduardo Moura in Blog | 1 comment


A maldição da realidade complacente


Eduardo-MouraDeus é bom. Ele faz brilhar o seu sol sobre maus e bons, e traz suas chuvas sobre justos e injustos. E é aí que mora o perigo! Trazida para o contexto empresarial, esta verdade produz o que poderíamos chamar de “a maldição da realidade complacente”. Porque o problema é que a realidade normalmente não pune os incompetentes com a devida severidade. Pelo contrário, com freqüência ocorre justamente o oposto: apesar dos erros cometidos já na concepção do produto, apesar dos problemas gerados durante a fabricação ou processamento, apesar das falhas no atendimento aos clientes, muitas empresas continuam encontrando gente disposta a comprar seus produtos e serviços.

O leitor pode achar inacreditável, mas neste exato momento, na absoluta maioria das empresas, independente de seu porte ou natureza de operação, o nível típico de desperdícios na cadeia de criação de valor, tanto na manufatura quanto em serviços, excede os 90%. É isso mesmo; não foi erro de digitação: em mais de noventa por cento do tempo de ciclo total de produção, estamos dedicados a atividades que não estão transformando o produto de uma maneira que o cliente esteja disposto a pagar por isso. Aqueles que já construíram um mapa do estado atual (“value stream mapping”) em suas cadeias de valor já confirmaram este fato assustador em sua própria realidade.

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Mas, lá no final da cadeia de processos, acabamos encontrando mãos tolerantes que sacam a carteira, o cheque ou o cartão de crédito para pagar pelo produto. E assim muitas empresas vão levando a vida desavisadamente, em absoluto conformismo com um sucesso que, afinal de contas, não veio por causa de sua competência, mas apesar da sua incompetência.

O que muitos executivos não compreendem é que este período de realidade complacente é apenas um tempo de graça e misericórdia que antecede um duro juízo. Se não houver uma correção a tempo, o período de vacas gordas pode subitamente transformar-se na situação oposta, na qual uma violenta tempestade de mercado expõe de modo contundente a fragilidade do barco. E então pode ser tarde demais para reagir; pode não haver tempo hábil nem espaço para recuperação.

Muitas empresas já naufragaram sob a maldição da realidade complacente. E o detalhe tragicômico é que afundaram esbravejando e atribuindo a culpa do sinistro a fatores externos tais como o governo, a economia, a concorrência desleal etc., sem dar-se conta de que a causa fundamental do fracasso sempre foi o elevado grau de miopia administrativa que as impedia de ver com clareza o tremendo estado de ineficiência com o qual passaram a conviver pacificamente, agravado pelo empirismo na análise e o imediatismo nas decisões.

Mas até mesmo os competentes não estão isentos do risco dessa maldição, pois o período de bonança trazido por estratégias exitosas pode trazer em seu bojo a “síndrome da vitória”. E aqui, apesar da causa ser bem diferente, a empresa pode da mesma maneira entrar num período de conformismo com o sucesso (talvez piorado por uma atitude de arrogância mercadológica), o que pode abrir as portas para a referida maldição.

O curioso é que essencialmente a mesma análise já fazia Deming desde meados do século passado! Mais cedo ou mais tarde, muitas empresas acabaram entendendo o recado e aderiram ao movimento mundial pela Qualidade. Porém, como já dissemos em artigos anteriores, a maioria dos líderes desse movimento não souberam deixar uma estrutura auto-sustentável, fundamentada sobre os princípios da excelência. O tempo passou, aqueles líderes ficaram velhinhos e se aposentaram. E com a saída da “geração Qualidade”, muitas companhias entraram num vale de desaprendizado organizacional.

Infelizmente, hoje a maioria dos integrantes da nova geração de executivos, que não viveu a revolução da Qualidade e ainda por cima cresceu sob a influência do fast food e do plug&play, buscam “instalar” soluções imediatistas para tentar resolver profundos problemas estruturais e culturais. Este imediatismo o velho Deming denominava “a busca de pudim instantâneo”, que consiste em aplicar modelinhos e soluções enlatadas, grande parte deles construídos sobre premissas ultrapassadas. O problema é que em muitos casos a aspirina imediatista acaba “dando certo”, e a realidade continua sendo complacente. A questão é: até quando?

Melhor não esperar… A saída é despertar do sono letárgico induzido pela realidade complacente. É buscar solução enquanto ainda existe uma. É abrir os olhos para a imperativa necessidade de ser extremamente competentes no entendimento dos clientes e do mercado, no planejamento e desdobramento estratégico, no desenvolvimento de novos produtos, nos processos de produção, no serviço ao cliente; buscar esse aperfeiçoamento mesmo quando tudo vai bem, quando aparentemente “não há problema”. É preciso reconhecer que é impossível assegurar um futuro melhor apenas com base no “feeling” adquirido no passado. E admitir que virtualmente todos na empresa, em todos os níveis, começando pelo mais alto executivo, necessitam dominar os conceitos, métodos e ferramentas da excelência empresarial, já de longa data disponíveis e de eficácia mais do que comprovada para sustentar a competitividade, mesmo em tempos de crise. Bem, estas foram palavras ácidas, mas dizem que remédio que não arde não cura…

Até a próxima edição!


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1 Comment

  1. Eduardo muito bom…gostei especialmente do parágrafo comentando sobre a migração da “geração qualidade”…interessante visão.

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